Música, linguagem e (re)conhecimento
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Data
2020-12-05
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Editor
Universidade do Estado do Amazonas
Resumo
A experiência musical ganhou uma enorme dimensão com o
avanço das tecnologias digitais. Uma das principais diferenças decorreu
da enorme oferta sonora que nunca foi tão grande em qualquer outra
época como agora. A obra integral de um autor, por mais produtivo que
tenha sido, por mais papeis que ele tenha usado para escrevê-la e ainda
que tenham sido gastas horas a fio de ensaios e gravações, cabe hoje
em pequenos dispositivos que variam do tamanho de um palito a uma
carteira, ou nem isso: podem ser acedidos de um ponto remoto, que
chamamos figurativamente nuvem, até nossos dispositivos eletrônicos.
A bem da verdade, podemos dispor de catálogos inteiros, de autores
diversos, de uma mesma época, de todas as épocas, se assim desejarmos.
A incrível facilidade com que se tornou fazer um registro gravado, com
qualidade incrivelmente alta, se comparada a duas décadas passadas,
rivaliza-se com a atordoante disponibilidade de documentos do passado e
do presente, através de iniciativas de portais digitais públicos e privados,
de uma grande biblioteca ou novos repositórios virtuais que reorganizam
em um arquivo coerente muitas bibliotecas.
A experiência do fazer e da escuta musical se tornou mais comum,
afinal podemos ter um estúdio doméstico de gravação e edição musical
para viabilizar nossa própria manifestação, ou ainda ouvir no carro ou
no transporte público os repertórios uma vez disponíveis somente para
ocasiões especiais e às vezes muito exclusivas, como as manhãs de verão
dominical de uma igreja paroquial veneziana do início do século XVIII,
um pequeno café parisiense dos anos 1930, ou uma noite irrepetível de
um festival de rock ao fim dos anos 1960.
Mas nossa capacidade de usufruto não pode se pretender total,
tampouco ao mesmo nível de processamento desses incríveis repertórios
que hoje acedemos. Algo que se constata na altura dessas duas décadas
completas de século XXI é que nossa capacidade de reflexão sobre ideias e
práticas musicais também precisa mudar. Ao invés da banalização aparente
de todo esse patrimônio musical transformado em dados informáticos,
podemos entender como diversos tempos e lugares lograram sua música.
Em um mundo que vai se homologando rapidamente pela
globalização determinada pela imposição canônica dos grandes centros
irradiadores de tecnologia e informação, percebemos, entretanto, que
algumas coisas não mudam. Isto porque novas ferramentas e técnicas
servem a velhas ideias.No primeiro capítulo, Geoffrey Baker, de longos anos estudando o
fenômeno da multiplicação de orquestras na história recente da Venezuela,
que deveria corresponder a um processo massivo de educação musical e
consequente emancipação cidadã, oferece argumentos que fragilizam tal
ideia e apontam o processo como uma ferramenta de duvidável propósito,
porque ao final parece ser uma estratégia de controle social e dominação
do estado sobre o indivíduo, constatação que jamais se coaduna com a
construção do livre arbítrio.
Baker remete a Favio Shifres, que no capítulo seguinte não deixa
espaço para dúvidas a quem ainda as tenha: ao sul cultural é necessário
reconhecer e valorizar as próprias experiências de manifestação da
linguagem, no caso aqui a musical, para então chegar a uma emancipação
do saber. O (re)conhecimento é portanto tornar visível a experiência fora
do cânone, posto que de outro modo só resta uma existência silenciosa e
subalterna, cheia de equívocos.
O texto de Graziela Bortz remete às primeiras palavras desta
apresentação levando a pensar que a corrida tecnológica também acaba
por ser um desafio de compreensão do próprio ser humano. Os desafios
educacionais do texto anterior aqui parecem ecoar como desafios à
própria essência humana.
A dimensão social da música continua a ser discutida por João
Quadros Jr. de modo a tornar mais completa a seção destinada à cognição
e à educação musical. Para fechar o bloco, Beatriz Ilari discute as últimas
pesquisas na área da cognição musical, envolvendo aspectos centrais que
preocuparam os autores precedentes, como a construção de um raciocínio
musical, a emotividade e o impacto nas relações sociais.O segundo bloco se destina a discussões musicológicas que não
perdem de vista muitos dos elementos precedentes. Aqui se veem
preocupações diversas com a teoria, a análise e a interpretação musical
para o qual são chamados aportes históricos, semióticos e abordagens
analíticas intertextuais. A obra de Robert Gjerdingen ecoa em quase todos
os textos aqui dessa seção, uma vez que esse pesquisador revelou de
modo eficaz o funcionamento de ensino-aprendizado e criação musical da
tradição de origem napolitana que no século XVIII alcançaria abrangência
ocidental, com consequências e vestígios por muitas décadas afora.
Essa tradição previa estágios pré-composicionais que nortearam
um processo massivo de formação e elaboração musical. Trata-se dos
esquemas de contraponto, modelos virtuais de onde se orientaram (e
ainda se orientam) muitas realizações práticas com grande possibilidade
de usos e variações.
Mário Trilha debruça-se sobre um desses esquemas em particular,
a Romanesca, identificando largo uso ao meio de obras instrumentais de
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diversos autores da segunda metade do século XVIII, em contraste com
sua frequente aplicação na abertura de movimentos, até então a maneira
mais comumente vista no repertório europeu.
A Romanesca continua sendo o ponto de atenção no texto seguinte,
em que argumento por uma interação dela com o assunto amoroso na
opera seria italiana. A teoria dos tópicos musicais, não fossem problemas
metodológicos que a têm restringido, poderia ter entrado aqui como suporte
para o entendimento de significados. Entretanto, a questão parece estar
muito mais acertada numa discussão sobre a maneira de representar e
interpretar ideias e seu contexto, sendo portanto um debate sobre a mímesis.O último texto desse bloco poderia ser o primeiro da seção seguinte.
Guilherme Monteiro, que realizou a primeira análise integral de uma obra
de grande dimensão de um autor brasileiro, seguindo o arcabouço teórico
de Gjerdingen e evidenciando associações com os tópicos musicais, destaca
aqui alguns excertos dos Seis Responsórios Fúnebres de João de Deus
do Castro Lobo que se conectam por causa da estruturação incomum e
similaridades textuais. Para a abordagem analítica interpretativa que tive
a instigante oportunidade de colaborar, foram trazidas fontes literárias
e sobretudo iconográficas que parecem dar sentido ao que pretendeu o
compositor mineiro na sua derradeira criação musical.
Desse modo, a seção seguinte, dedicada à iconografia musical,
surge de modo oportuno. Nela, Vergara nos mostra aproximações da
educação musical, ou através da música, e a prática social homoerótica
nas representações iconográficas na Antiguidade Clássica, o que nos
revela outras construções sociais e entendimentos artísticos.
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Música, Linguagem
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